revista urutágua – revista acadêmica multidisciplinar – http://www.urutagua.uem.br/015/15santos.pdf nº 15 – abr./mai./jun./jul. 2008 – quadr
Revista Urutágua – revista acadêmica multidisciplinar –
http://www.urutagua.uem.br/015/15santos.pdf
Nº 15 – abr./mai./jun./jul. 2008 – Quadrimestral – Maringá – Paraná –
Brasil – ISSN 1519-6178
Os viajantes e o negro no Rio de Janeiro do século XIX
Rafael Chaves Santos
Resumo: Os viajantes alemães que vieram ao Brasil no século XIX
produziram relatos a respeito da população brasileira baseados na
ideologia iluminista e, fundamentalmente, no conceito de Bildung
(formação). Estes relatos continuam sendo fontes históricas
fundamentais para a compreensão de nosso passado colonial e imperial e
certamente vão contribuir, direta ou indiretamente, para as
construções identitárias veiculadas pela própria elite letrada no
Brasil, após interagirem com estes discursos. O presente artigo os
analisa do ponto de vista da ideologia e das práticas sociais de seus
enunciadores.
Palavras-chave: Iluminismo, negros, viajantes, ideologia
Travelers and black people in Rio de Janeiro in the XIX century
Abstract: German travellers that came to Brazil in the XIX century had
produced documents about the brazilian population based on the
illuminist ideology and, fundamentally, in the Bildung concept. These
reports are still essential historic sources for the comprehension of
our colonial and imperial past that will certainly contribute, direct
or indirectly, to identity constructions related to our own literate
elite in Brazil, after they interact with these speeches. The present
paper analyses them by the ideology point of view and by the social
practices of their enunciators.
Key words: Enlightenment, blacks, travelers, ideology
Introdução
No século XIX são incontáveis os viajantes, principalmente europeus,
que, por uma razão ou por outra, desembarcaram em nosso país. Dentre
estes encontramos um grande número de alemães, os quais, em sua
maioria, são cientistas das mais diversas áreas. Na verdade o número
de alemães que vêem ao Brasil só é ultrapassado pelo número de
viajantes ingleses.
Estes pesquisadores produzem obras sobre suas áreas ocupacionais e
suas obram, de maneira direta ou mesmo indireta, se referem aos
habitantes do Brasil, brancos portugueses ou descendentes, mulatos,
negros e índios, assim como a questões nacionais, como a escravidão.
Este artigo terá como foco apenas os viajantes alemães que no século
XIX vieram ao Rio de Janeiro e que, de alguma forma, se ocuparam com
as questões da população desta cidade.
É necessário ressaltar aqui que estes viajantes alemães viviam ainda
sobre a influência do Iluminismo, movimento que influenciou as mais
diversas áreas de atuação, como por exemplo, a política, economia,
artes etc. O Iluminismo iniciou-se no século XVIII e atingiu seu ápice
em 1789 com a Revolução Francesa e, em cada nação européia apresentou
características diferenciadas.
Na Alemanha, o Iluminismo teve forte influencia na literatura e na
área político-econômica. Esta influencia sempre foi regida por um
conceito fundamental, que diferenciou por completo o Iluminismo alemão
dos demais, o conceito de Bildung. Esta palavra, que tem difícil
tradução por abranger várias nuances, pode ser de certa forma
entendida como “formação cultural” ou nas palavras de Maas (2000, 27):
a tendência dos dicionários e do uso lingüístico moderno é de atribuir
ao termo “Bildung” (formação) o sentido de um resultado de um processo
que não pode ser atingido apenas pela atividade metódica da educação;
a “Bildung” pressupõe a atividade espontânea do indivíduo, ocorrendo
ao longo do processo de auto-aperfeiçoamento.
O conceito propõe a transformação humanista do homem a partir da
cultura, do conhecimento, e, centralmente, a partir da linguagem, um
conceito cunhado pela intelectualidade alemã no sentido da superação
dos valores feudais do velho regime e da introdução de valores
republicanos, em substituição à violência de massas e à ação política
direta, coisa então impossível no Império Germânico de então.
É essencial ter esta noção do significado do termo Bildung para
analisar a visão destes viajantes alemães, influenciados pelo
Iluminismo, e concluir até que ponto seus discursos são, na verdade,
racionais1 ou limitados.
Este artigo, contudo, é apenas uma pequena parte de um projeto de
pesquisa mais amplo que pretende discutir também, a partir da análise
de discursos dos viajantes alemães que no século XIX estiveram no Rio
de Janeiro, a questão da formação identitária do Brasil e, desta
forma, demonstrar em que medida práticas discursivas de então se
relacionaram com os discursos nacionais da época, gerando os discursos
da atualidade a respeito da população nacional.
Esta pesquisa propõe uma análise interdisciplinar que aciona as
disciplinas da história e da antropologia e tem como base a análise
crítica do discurso, que entende o texto e sua linguagem como práticas
sociais e, sem abandonar o contexto, discute a relação existente entre
linguagem e poder. Segundo Wodak (2003: 19-20)
a ACD trata de evitar o postulado de uma simples relação determinista
entre os textos e o social. Tendo em consideração as intuições de que
o discurso se estrutura por dominação, de que todo discurso é um
objeto historicamente produzido e interpretado, isto é, que se acha
situado no tempo e no espaço, e de que as estruturas de dominação
estão legitimadas pela ideologia de grupos poderosos, o complexo
enfoque que defendem os proponentes.
Para este artigo foram selecionados, entretanto, apenas dois
viajantes. A visão destes viajantes foi abordada em relação a uma
parte da população do Brasil de então: os negros (escravos). Desta
forma, este artigo limita o seu campo de abordagem a uma parte da
população retratada pelos autores, contudo, sem perder, por este
motivo, a raiz do pensamento presente nestes autores selecionados.
Os viajantes alemães
O primeiro viajante escolhido é Carl Hermann Conrad Burmeister,
nascido em 1807 na cidade de Stralsund e falecido em 1892 em Buenos
Aires, um dos mais importantes representantes desta época e, em seu
relato, encontramos valiosas informações, o que torna a análise
bastante significativa.
Alexander Von Humboldt, que se impressionou com a obra “Geschichte der
Schöpfung” (História da criação) de 1843, escrita por Burmeister,
obteve para este junto à universidade de Halle uma autorização
especial para que ele pudesse realizar, então, no ano de 1850 uma
viagem de caráter científico ao Brasil. No dia 12 de setembro de 1850
iniciou-se a viagem que só terminaria em 6 de abril de 1852.
O resultado desta viagem pode ser considerado de extrema relevância,
já que Burmeister catalogou 800 espécies de pássaros, 90 espécies de
anfíbios, 70 de mamíferos e aproximadamente 8 mil espécies de insetos.
Além disso, publicou nos anos seguintes 5 obras sobre a viagem:
Bericht über eine Reise nach Brasilien (Relato sobre uma viagem ao
Brasil) em 1853, Landschaftliche Bilder Brasiliens (Imagens
paisagísticas do Brasil) no mesmo ano, Reise nach Brasilien (viagem ao
Brasil) também em 1853, Systematische Uebersicht der Thiere Brasiliens
-3 Bände (Resumo sistemático dos animais do Brasil em 3 volumes, entre
1854 e 1856, e Erläuterungen zur Fauna Brasiliens (Comentário sobre a
fauna brasileira) em 1856.
Destas cinco obras publicadas sobre a viagem, a que será utilizada
neste artigo é a obra Reise nach Brasilien (viagem ao Brasil) de 1853,
onde se encontram relatos do autor sobre a população do Brasil.
Este autor é, sem dúvida, um verdadeiro representante da época da
razão, pois além de professor catedrático da universidade de Halle,
foi botânico, zoólogo, geógrafo, geólogo, biólogo marinho,
palenteólogo, etc e publicou cerca de 300 trabalhos em diversas áreas
científicas.
O segundo viajante escolhido é Ernst Ebel2, cujas datas de nascimento
e morte permanecem ocultas para os pesquisadores brasileiros. O que se
sabe sobre este viajante é que ele nasceu na cidade de Riga, capital
da Letônia, que ficou sobre influência alemã até fins do século XIX,
quando em 1891 a língua russa foi imposta como oficial. À época de
Ernst Ebel a maioria da população, cerca de 42,5%, falava alemão e,
sabe-se que todos os registros de nascimento, casamento e mortes foram
mantidos em alemão até 1891.
Em 1824 Ernst Ebel vem ao Brasil a princípio como “turista” e escreve
uma espécie de diário para seus amigos. Estes insistem para que Ebel
publique suas anotações por acharem que elas serviriam como fonte de
informações úteis a outros possíveis viajantes que resolvessem visitar
o país. Desta forma, Ebel decide por reunir suas breves cartas e, após
organizá-las, resolve publicá-las em 1828. O seu livro é intitulado
Rio de Janeiro und seine umgebungen im Jahr 1824 (O Rio de Janeiro e
seus arredores em 1824)
Também é interessante relatar que Ernst Ebel no prefácio de sua obra
pede desculpas ao leitor por não ser escritor de profissão e diz que o
valor de seu “livrinho”, assim chamado por ele, reside no fato de
conter somente a verdade, “o tanto quanto nos seja possível, criaturas
sujeitas a equívocos, vislumbrar essa deusa.”
Esta temática sobre a verdade das palavras ou relatos de viajantes já
tinha sido anteriormente polemizada de forma mais objetiva por
Maximiano de Wied-Neuwied3 em sua obra Reise nach Brasilien in den
Jahren 1815 bis 1817 (Viagem ao Brasil nos anos de 1815 e 1817), na
qual este viajante afirma:
Faz-se geralmente na Europa uma idéia bastante inexata desses
longínquos países. Pode-se atribuir esse erro a certos viajantes, que
não se limitam a tratar somente do que viram e a escritores que
fizeram descrições elaboradas nos gabinetes e compostas sobre tema
escolhido, com as mais interessantes citações de autores conhecidos, e
arranjados pela fantasia, sem nenhum conhecimento da matéria, que
podem agradar pelo primor do estilo e a forma atraente com que são
apresentados, mas não possuem nenhum valor intrínseco, pois estão
repletos de erros. Como evitar os erros e as inexatidões, quando não
se tem presente, aos olhos, o objeto de que se deseja traçar a imagem?
Aplicam-se ao conjunto traços que só convém às partes de um país tão
grande como o Brasil, se pareçam umas com as outras, quando cada
província apresenta sua particularidade distinta? Assim é que se lê em
mais de um livro que, em todo o Brasil, se encontram fetos
arborescentes; exagera-se em geral a beleza do país; fala-se de
macacos que riem e tagarelam; de pássaros canoros que chilreiam; de
laranjeiras que crescem nas florestas; de Agave fatida em cima das
árvores; de toda sorte de propriedades absurdas atribuídas às
serpentes; fazem-se descrições exageradas das florestas. O fato é que
raramente se encontram reunidas todas as coisas agradáveis e
interessantes como o imagina um autor sentado em sua poltrona, depois
de haver retirado suas descrições de viajantes acostumados a
representar tudo com exagerada beleza. (Wied-Neuwied, 1820, 399)
Com base no que afirma Wied-Neuwied torna-se necessário refletir
acerca do que é relatado por um viajante. Por um lado àquele que
esteve em contato com determinada situação, pode vir já previamente
carregado de conceitos e ter um olhar e opinião direcionados e prontos
sobre algo e; da mesma forma, o fato de não ser um escritor de
gabinete, ou seja, ter vivenciado fatos não torna necessariamente suas
palavras verdade, estas são apenas a visão deste autor (viajante) que
podem ou não ter uma relação direta ou indireta com a realidade, que
em tese é a sua verdade, a verdade para seus olhos e que devem ser
muito bem analisadas e criticadas por seus leitores.
O que devemos levar em conta não é somente se os relatos são ou não
fontes fidedignas, mas que são documentos que, como os demais, devem
ser tratados criticamente e que, em geral, acusam um alto grau de
veracidade subjetiva, isto é, descrevem experiências individuais que
estão ligadas à personalidade do escritor, ao seu grau de
escolarização, ao seu nível social e à vivência que teve neste seu
novo hábitat.
O objetivo maior da pesquisa em andamento que é relativizado neste
artigo é, portanto, analisar até que ponto estas palavras destes
viajantes se concretizaram em realidade (verdades) e foram então
assimiladas pelos receptores europeus assim como pelos brasileiros à
época.
Burmeister e o negro
Feitas estas ressalvas preliminares, passemos então a examinar os
textos em questão, concentrando a analise na questão do negro na visão
dos autores.
O negro é, a vista da grande maioria dos viajantes alemães, retratado
como um ser inferior ao branco (brasileiro4 ou europeu) e a
escravidão, como algo necessário ou até mesmo positivo para este “ser
inferior” que em sua nação de origem, na visão dos viajantes, estaria
em condições piores.
Burmeister, se olharmos superficialmente, caracteriza o negro
positivamente em alguns trechos de sua obra. Em alguns momentos de seu
texto ele nos apresenta características positivas e um olhar também
positivo sobre o negro, podendo enganar um leitor distraído, levando-o
até a pensar numa espécie de simpatia do autor para com aquele. Nos
trechos abaixo selecionados, vemos o nosso viajante em questão
eufemizando5 o que ele posteriormente vai criticar abertamente com um
leque de adjetivos:
O negro, no Brasil, nunca é chamado por tal, mas sim de ‘preto’, que é
o nome da própria cor. A palavra negro é termo carinhoso,
especialmente para crianças, sendo freqüente o pai chamar o filho de
‘meu negro’. (1853, 72)
Seus modos para com os brancos sempre me pareceram decentes e
respeitosos e nunca notei a mínima descortesia. O mercado da praia dos
mineiros, onde se vende grande quantidade de gêneros alimentícios, é o
principal ponto de reunião da gente de cor. O negro é, em suma, um
indivíduo de bom humor. (1853, 73)
Mas para o leitor mais atento o texto de Burmeister vai pouco a pouco
se deslocando da eufemização para a naturalização6 do negro.
Embora convencido, por observação própria, de que é exata a afirmação
da inferioridade física e mental do preto em relação ao branco e que
jamais passará de sua posição servil na vida em comum com este, sempre
lhe tive grande simpatia, contemplando-o com interesse, como produto
exótico da natureza (1853, 72)
Nesta aproximação do negro com a natureza, Burmeister vai construindo
um discurso que justifica a posição inferior do negro em relação ao
branco na escala social. E deixa clara sua visão da inferioridade
mental (Bildung) do negro em relação ao branco, como um ser que nunca
vai evoluir intelectualmente. A alternância constante entre a
eufemização e a naturalização, como representações ideológicas, entra,
então, em choque quando Burmeister se refere à convivência direta com
o negro.
Amava-os, se assim posso dizer, teoricamente, à distância, enquanto
não fui forçado a conviver, mas desde que tal aconteceu, este
sentimento transformou-se em repugnância. O preto tem algo de
desagradável, que é menos de seus costumes que de sua pessoa física.
(1853, 73)
Nota-se com clareza que do “amor” (amava-os), a simpatia do autor pelo
negro, passou rapidamente a repugnância e logo em seguida o autor nos
justifica esta mesma repugnância novamente com a aproximação do negro
à natureza, ou seja, utilizando-se de uma justificativa “natural” para
isso. Na situação aqui descrita trata-se apenas do cheiro do negro,
algo natural a qualquer ser humano, como o próprio autor nos diz, e
que no caso do negro é tratado como algo diferenciado.
A catinga provém das exalações e da transpiração do corpo, sendo
agravada ainda pela falta de asseio da maioria deles, mas, como não é
esta a causa, nem limpeza, nem banhos adiantam. Assemelha-se ao cheiro
de suor de gente comum, porém mais penetrante e ascoroso. Há
indivíduos que o tem em grau mínimo; outros, entretanto exalam-no de
modo a sentir-se a grande distância (1853, 73)
Em outro momento quando Burmeister fala sobre as habilidades físicas
dos negros novamente os aproxima da natureza, ao compará-los a macacos
e, da mesma forma, os desqualifica como seres que possam ter traços
intelectuais:
Em suas obrigações, não se destacará pelo zelo, mas será sempre
pontual; precisa entretanto, ser vigiado para não se tornar
preguiçoso. Adquire facilmente certa agilidade e habilidades manuais
que fazem lembrar o dom de imitação do macaco, mas falta-lhe, por
completo o gênio de invenção e a iniciativa própria.(1853, 73)
E o autor segue na sua qualificação, agora aberta, sobre os negros e o
modo como eles devem ser tratados:
Alguns são extremamente falsos e unicamente por meio de contínuos
castigos podem ser conduzidos. Em breve, porém, acostumam-se de tal
forma às punições que perdem o receio ao chicote, recalcitrando nos
seus erros e vícios antigos por pura maldade. (1853, 74)
Burmeister deixa clara sua visão de que o negro, como escravo, deve
acima de tudo ser obediente, e qualifica sua atitude quando não está
sobre vigilância de seu ‘dono’ como algo próximo a uma atitude
infantil ou mesmo animalesca, algo que segue a força da natureza, e
que para ser obtida pode-se recorrer a qualquer tipo de recurso,
inclusive, ou principalmente, o castigo físico, através de chicotadas.
... se a obediência é devida unicamente ao medo, fará tudo que lhe
passar na cabeça sempre que não for vigiado. Em regra, porém,
consegue-se menos pela bondade ou mesmo pela camaradagem do que pela
severidade (1853, 74)
Em seguida, após falar sobre a obediência ou desobediência do negro
(escravo), Burmeister refere-se aos momentos em que os negros se
encontram sozinhos e, da mesma forma, os aproxima da natureza
comparando-os novamente aos macacos.
Quando entregues a si próprios, os negros têm algo de ridículo, que
faz pensar na sua inegável aproximação da natureza do macaco. Falam
consigo mesmos, em voz alta enquanto passeiam ou carregam seus
fardos.(1853, 74)
Se tomarmos como base o pensamento de Lakoff e Johnson que afirmam que
“na cultura ocidental, as pessoas se vêem como tendo controle sobre os
animais, e é a capacidade especificamente humana de atividade racional
que coloca os seres humanos acima dos outros animais e lhes propicia
esse controle” (2002, 65), podemos entender onde Burmeister quer
colocar o negro no quadro social, ou seja, como um ser que deve, por
sua irracionalidade e incapacidade, ser controlado pelo branco. Essa
tentativa constante do autor de aproximar o negro, por suas
características físicas, seja por sua aparência ou mesmo pelo seu
cheiro (de suor) ao macaco (natureza - entendida como algo que o homem
controla) leva-nos a concluir que, para ele, o negro é definitivamente
um ser inferior ao branco (europeu) e deve estar não só sob o julgo
deste, mas também ser tratado de maneira diferenciada, ou seja, como
ser inferior que é.
Inegável também é, na verdade, notar o quanto Burmeister, por ser um
cientista renomado, através de seus relatos, conseguiu que alguns de
seus conceitos, no caso sobre o negro, fossem assimilados, após
interagirem com outros de sua época e que assim, permanecessem na
ideologia difundida não somente na Alemanha, ou na Europa, mas também
aqui, no Brasil.
Antes de concluir, contudo, é preciso se ater ainda à questão do modo
de construção do texto (estilo) para reafirmar o que foi dito acima.
Segundo Fairclough (2003, 168) “a questão da modalidade pode ser vista
como a questão de quanto às pessoas se comprometem quando fazem
afirmações, perguntas, demandas ou ofertas.” Essa questão de estilo se
torna complexa para ser analisada quando se trata de um texto
traduzido, podendo, assim, gerar imperfeições e falsas conclusões, já
que em algumas passagens há uma mudança significativa no que se refere
à modalidade do texto. Não entro aqui no mérito da tradução, ressalto
apenas que para esta análise será utilizado, então, o texto no
original, ou seja, em alemão.
Para, de certa forma, não prolongar demais a análise utilizarei apenas
um pequeno parágrafo que, contudo, exemplifica claramente a questão da
modalidade neste autor:
Obwohl ich nach meiner ganzen Erfahrungen mich für die Richtigkeit der
Ansicht entscheiden muss, dass der schwarze Mensch körperlich wie
geistig unter dem Weissen steht. (1853, 88)
Neste parágrafo nota-se, primeiramente, a utilização de um verbo
modal. O verbo em questão aqui é o müssen, utilizado na primeira
pessoa do singular, muss, significando a voz do autor. Este verbo é
comumente traduzido por “ter que” e enfatiza a idéia que algo que foi
dito só pode ser verdade.
Quando recorremos a um dicionário monolíngue7 para buscar o
significado deste verbo vemos as seguintes definições: (1) expressa
algo que necessariamente é, ou (2) expressa algo em que o falante
necessariamente acredita. (2007, 302)
Outro verbo importante para a análise presente neste parágrafo é o
verbo sich entscheiden (decidir-se por) e, no caso, o autor decidiu-se
pela certeza (Richtigkeit) de que o negro é (tem que ser/ muss)
inferior ao branco, não só fisicamente (körperlich), mas também
mentalmente (geistig).
Em seguida percebe-se a utilização de palavras que deixam claro que
aquela é a visão do autor: nach meiner Erfahrungen (segundo minha
própria observação). Desta maneira ao delimitar que a afirmação é sua,
por ser um homem da razão, um cientista renomado, e utilizar
construções expressivas, ricas de sentido e significado, aquilo que
afirma (a inferioridade do negro em relação ao branco) passa, então, a
ser visto como verdade.
Ebel e o negro
Ernst Ebel, de outra forma, no que diz respeito à sua descrição do
negro é, desde o princípio, categórico em afirmar que este é inferior
ao branco e, da mesma forma que Burmeister, o aproxima da natureza. É,
portanto, importante frisar aqui a afirmação de Lakoff e Johnson
(2002) de que o homem acreditava que controlava a natureza e, assim
sendo, ele poderia fazer o que bem entendesse com ela para obter
benefícios.
Logo que chega ao Rio de Janeiro Ebel se depara com um enorme número
de negros. Sua primeira impressão já qualifica sua visão do “exótico”
e igualmente a Burmeister se refere ao cheiro do negro como algo
desagradável:
Estranha é a sensação do desembarque. Ao invés de brancos só vi negros
seminus a fazerem um barulho infernal e exalarem um cheiro altamente
ofensivo ao olfato. (1828, 12)
Porém, o que mais se destaca no relato de Ernst Ebel, e que, por um
lado, também justifica a sua escolha para esta análise, é o fato dele
abordar, mesmo que não se aprofundando no tema, a questão econômica da
escravidão. Dentre os viajantes de língua alemã estudados até aqui na
pesquisa em andamento, apenas Ernst Ebel e Ina Binzer8 abordam esta
questão até certo ponto objetivamente. Porém Ina Binzer trata a
questão de maneira mais clara, talvez por ter estado no Brasil numa
outra conjuntura, já após a promulgação de leis relativas à escravidão
como a Lei do Ventre Livre (1871), e as vésperas da abolição (1888).
Ernst Ebel, que esteve no Brasil em 1824, defende a escravidão, que
para ele deveria ser mais branda no trato com o escravo, através de
dois argumentos.
Primeiramente para Ebel a situação do negro (escravo) no Brasil era
infinitamente melhor do que se ele estivesse em seu país de origem sob
o julgo de um governo arbitrário:
O tratamento aqui dispensado aos escravos é, de modo geral, bom, seus
senhores sendo severamente proibidos de puni-los com mais de quarenta
chibatadas e, nos casos de crimes graves, devem ser entregues às
autoridades. (1828, 44)
...vê-los submetidos em sua própria terra a um arbítrio revoltante e
ilegal, a ponto de, em comparação, parecer humano o duro tratamento
que sofrem às mãos dos europeus enquanto assim for, será contribuir
para o bem dos mesmos afastá-los de sua pátria. Já datam aqui de largo
tempo, as leis adotadas em seu favor, graças às quais os escravos são
até certo ponto protegidos do arbítrio de seus senhores.(1828, 49)
Na visão deste viajante, a escravidão não é entendida ou considerada
como um castigo ou um ato de privação de liberdade, já que o negro é
aproximado ou mesmo visto como um ser da natureza, qual um macaco, e
que poderia e deveria ser, então, assim como qualquer elemento da
natureza, controlado e subjugado pelo homem (branco) superior. Desta
forma é possível concluir porque Ernst Ebel em momento algum questiona
a ausência de liberdade como algo fundamental no que diz respeito à
escravidão:
Há dias fundeou um (navio negreiro) com 250 negros, na maioria
crianças de dez a quatorze anos que, acocorados nesses galpões em
filas de três, pelo chão assemelham-se mais a macacos, dando mostra,
por sinal de bom humor e satisfação, embora repelentes no aspecto e
depauperados. (1828, 42)
Conquanto, não vá contestar que entre eles possa haver gênios e os tem
havido, qual um Toussaint (Louverture), um Christoph (rei do Haiti)
etc. nenhum observador de espírito aberto poderá negar que esta raça
se encontra como que na meninice e se caracteriza por uma típica
apatia que a inabilita para qualquer alto sentimento moral... (1828,
48)9
Remetendo esta última afirmação de Ebel ao conceito de Bildung
(atividade espontânea do indivíduo ocorrendo ao longo do processo de
auto-aperfeiçoamento) é possível perceber que, para o autor, o negro
não está ainda apto para este desenvolvimento e necessita também de
muito tempo para esta ‘evolução’. E Ebel conclui seu raciocínio desta
forma:
...nunca pensam no dia seguinte, sendo incapazes de qualquer vocação
duradoura; na realidade só querem comer, dormir e amar. Isto se
observa sobretudo entre os negros nascidos na África, mesmo quando
chegados novos. Os nascidos no país já são mais aculturáveis, mas
quanto aos primeiros, pouco adianta tratá-los bem, como já
disse.(1828, 48)
Para Ebel, como para (quase) todos os viajantes europeus, se
desenvolver significa agir de maneira semelhante aos padrões europeus,
ou seja, se ‘europeizar’. Desta forma, o negro, que só quer ‘comer,
dormir e amar’, embora seja a mola propulsora do desenvolvimento
econômico do país, não está pronto para esta transformação, para este
desenvolvimento ‘intelectual’.
O segundo argumento referente à defesa da escravidão por Ebel é a
questão econômica. Para ele o desenvolvimento do Brasil está
diretamente ligado à escravidão, sem esta o país correria o risco de
desandar. Segundo o autor, a economia nacional dependeria diretamente
do escravo.
Em vez de apoiar os desígnios secretos da Inglaterra que, na abolição
do tráfico negreiro, vê o próprio benefício, ao passo que tolera os
vergonhosos seqüestros humanos pelos barbarescos, deveriam as
potências unir-se...(1828, 48)
É certo que o tráfico não terá como resultado paradeiro imediato,
somente os escravos sairão um tanto mais caros. Com isso não serão
servidos os ingleses que, já os possuindo em excesso nas suas
colônias, visam, com a total repressão do tráfico, dificultar aos
demais países americanos a prosperidade de seus estabelecimentos; as
belas palavras ‘direitos humanos’ são apenas pretexto para seu
benefício. (1828, 50)
Por um lado a primeira lei inglesa em relação a escravidão, chamada
Lei Bill Aberdeen, de 1845, que concedia à Marinha Real Britânica
poderes de apreensão de qualquer navio envolvido no tráfico negreiro
em qualquer parte do mundo, foi promulgada somente vinte anos após a
vinda de Ebel ao Brasil. Por outro, sociedades abolicionistas na
Europa já existiam desde o fim do século XVII, como a Sociedade
abolicionista na Inglaterra (1783) e a Sociedade dos amigos nos negros
na França (1788). Está claro também que, ao citar Toussaint
L’Ouverture (líder da revolta negra no Haiti), Ebel tinha em mente o
perigo de uma revolta nas proporções ocorridas no Haiti e defendia
então um forte abrandamento da escravidão no Brasil. Estes fatos, se
acrescidos aqui também que obras referentes ao fim da escravidão já
haviam sido publicadas no século anterior, como Riqueza das nações de
Adam Smith (1776), História filosófica e política dos estabelecimentos
e do comércio dos europeus nas Índias de Thomas Raynal (1770) e também
O Espírito das Leis de Montesquieu dentre outras, caracterizam uma
visão limitada de Ebel como um representante do século das luzes
(Iluminismo).
Relevante se destacar aqui que Ernst Ebel diferentemente de
Burmeister, que esteve no Brasil como pesquisador e retornou como
várias obras prontas para publicar, veio ao Brasil como ‘observador’ e
não tinha pretensão de publicar seus escritos. Entretanto ao publicar
e, principalmente, ao tratar da questão econômica da escravidão, que
é, na verdade, o seu elemento chave, torna seu texto de uma
importância particular para o entendimento desta questão, o que, para
muitos, passou desapercebido, ou talvez tenha sido até mesmo
conscientemente omitido. E, da mesma forma, ao se posicionar de
maneira tolerante perante a escravidão afirmando a necessidade desta
como algo positivo para o ser inferior (ao branco), assim como o fez
Burmeister, demonstra a fragilidade do discurso e da visão iluminista
alemã.
Conclusão
Os autores e suas obras utilizados nesta análise assim como outros
viajantes e suas obras são parte da história nacional que permanece
para muitos como uma realidade distante e dialeticamente presente.
Distante, pois grande parte destes textos de viajantes se encontra
apenas na língua materna dos mesmos e são também de difícil
localização e acesso, e, ao mesmo tempo, presente, pois o conteúdo e
conceitos dos mesmos (a ideologia) foram de alguma forma assimilados e
são ainda hoje reproduzidos por parte da população européia e também
brasileira.
Contudo diversas áreas do conhecimento — história, antropologia,
lingüística, entre outras — começaram recentemente a (re)tomar estas
obras como fonte de informações fundamentais para o melhor
conhecimento da nossa história, da origem de nossa população e de
ideologias que permanecem reinantes até hoje.
Referências
BURMEISTER, Carl H. C. Viajem ao Brasil pelas províncias do Rio de
Janeiro e Minas Gerais Editora Itatiaia , SP, 1980.
––––––. Reise nach Brasilien durch die Provinzen von Rio de Janeiro
und Minas Gerais. Verlag von Georg Reimer, Berlin, 1853
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. 3a. ed. Campinas: Editora
da UNICAMP, 1997.
EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824 ; trad. e notas
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Mestrando em lingüística aplicada na UFRJ. E-mail: [email protected]
1 O termo racional aqui foi usado em referência à razão, pois a época
do Iluminismo ficou conhecida também como a era da razão, onde tudo
poderia ser resolvido pelo uso da razão.
2 Ernst Ebel é um escritor de língua alemã, porém não é alemão de
nascença. Na pesquisa em andamento os viajantes utilizados são aqueles
que fazem uso da Língua alemã, mas não necessariamente são alemães.
3 O príncipe Maximilian Alexander Phillip zu Wied-Neuwied (1782-1867)
foi naturalista e etnólogo. Esteve no Brasil entre 1815 e 1817. Sua
obra foi publicada em 1820.
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4 O termo branco brasileiro deve ser entendido como descendente de
português ou outra nação européia , mas aquele que mora no Brasil.
5 Eufemização, valorização positiva de instituições, ações ou
relações. Thompson (1995, 81-9)
6 Naturalização, criação social e histórica tratada como acontecimento
natural. Idem
7 Ver bibliografia.
8 Ina von Binzer esteve no Brasil entre os anos de 1881 e 1882.
9 Toussaint Louverture, nascido na então colônia francesa de Santo
Domingo (atual Haiti) entre 1791 e 1794, tornou-se um símbolo da
liberdade dos negros nas Américas ao se tornar da revolta dos negros
que culminou com a independência de sua terra natal. (Henri
Christopher, rei do Haiti entre 1804 e 1820).
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