in weekend, suplemento do jornal de negócios, 12 de junho de 2009 portugueses errantes todos os caminhos dos judeus com origem portuguesa

in Weekend, suplemento do Jornal de Negócios, 12 de Junho de 2009
PORTUGUESES ERRANTES
Todos os caminhos dos judeus com origem portuguesa vão dar a
Amesterdão. Aqui, os “conversos” reconverteram-se e traçaram a sua
história judaica. Um dia o centro dos sefarditas ibéricos, Amesterdão
continua a ser a capital da sua memória.
Susana Moreira Marques, em Amesterdão
O judeu Ahasverus vivia numa rua de Jerusalém por onde sempre passava
o espectáculo dos condenados. Numa sexta-feira, um condenado que se
dizia filho de Deus, tropeçou sob o peso da cruz à porta do judeu
Ahasverus. Este, sem piedade, ordenou ao condenado que seguisse
caminho. “Eu caminho”, respondeu-lhe Jesus Cristo, “mas tu irás
caminhar até eu voltar.”
A vez seguinte que se ouviu falar do judeu Ahasverus foi quando, no
século XIII, um grupo de peregrinos italianos garantiu ter conversado
com ele na Arménia.
Quem melhor o descreveu foi o Bispo de Schleswig: o judeu Ahasverus
era um homem alto, tinha o cabelo tão comprido que ultrapassava o
nível dos ombros, e as plantas dos pés eram grossas como solas de
sapatos.
Algumas décadas depois do encontro entre o Bispo de Schleswig e o
judeu Ahasverus em Hamburgo, em 1542, emissários do mesmo bispo em
Madrid juraram ter conhecido um homem de aparência semelhante e capaz
de falar castelhano.
No Brasil, acredita-se que o judeu Ahasveru imigrou para Pernambuco
quando Pernambuco ainda era holandês. A última vez que foi avistado no
Brasil, o judeu Ahasverus chorava sangue, à porta de uma igreja em
Minas Gerais. Era sexta-feira de Paixão.
Apesar de nunca ter sido retratado com livros, foi sempre assim que o
escritor Alberto Manguel imaginou Ahasverus. Desde que era criança e a
sua ama checa sobrevivente do Holocausto lhe contou a lenda do Judeu
Errante, que Alberto Manguel, judeu argentino apaixonado por livros,
achava que o judeu Ahasverus vivia uma maldição maravilhosa: ele
visitava todas as bibliotecas do mundo. Ele falava todas as línguas e
podia ler todos os livros.
Se o instinto de Alberto Manguel estiver certo, então certamente o
Judeu Errante terá estado aqui. Terá subido as escadas apertadas para
a mezzanine para se pôr a par das novidades, e terá voltado a descer
as mesmas escadas estreitas para se perder no tempo áureo da produção
de livros hebreus em Amesterdão, durante o século XVII. O
bibliotecário, qualquer que ele fosse, teria talvez ficado espantado
com aquele visitante trazendo bengala de caminhar, desconhecendo
tratar-se do mito do Judeu Errante em carne e osso. Ele seria um
leitor prodigioso, talvez o único leitor capaz de ler Português,
Castelhano, Hebreu, Holandês, Italiano, Francês, Alemão, Latim e
Grego, todas as línguas arrumadas nas prateleiras daquela biblioteca.
O bibliotecário Rosenberg, prático e sem tempo para disparates,
ter-se-ia rido desta história, e talvez pudesse ter provado com
registos e com todo o seu conhecimento que não há tal coisa como um
judeu com mais de dois mil anos que, depois de condenado a caminhar
pelo mundo, ainda se impõe a si próprio a tarefa de nunca parar de
aprender.
Um grupo de judeus, sim, já seria mais plausível.
As considerações sobre o mito do Judeu Errante de Alberto Manguel
(publicadas no suplemento literário do jornal The Guardian em
Fevereiro passado) só são pertinentes porque parecem enquadrar na
perfeição, não só a história dos judeus portugueses de Amesterdão, mas
a intenção e razão de ser da biblioteca – antes, também escola – da
comunidade portuguesa: um eterno Renascimento onde todos os livros,
como todas as viagens, interessam, pelo simples prazer de
continuamente procurar.
Menasseh ben Israel (Portugal, 1604 – Holanda, 1657) – rabino,
diplomata que ajudou a impulsionar a Readmissão dos Judeus em
Inglaterra, e primeiro impressor de livros judeu – sabia isto. No
Museu Judaico de Amesterdão pode ver-se um exemplar da Bíblia,
impresso por Menasseh ben Israel. Como selo de impressor, Menasseh ben
Israel escolheu a imagem do Judeu Errante. O seu mote: “Peregrinando
Quaerimus” – “Peregrinando procuramos.”
O exílio, a dispersão – em bom português, a diáspora – não tem que ser
uma fraqueza. Pode ser uma força. Este sítio – com um cheiro a pó de
livros tão intenso que Alberto Manguel, o homem que escreveu “La
Biblioteca de Noche”, poderia desfalecer de prazer – testemunha essa
força.
“Essa é a natureza de todo o exílio”, escreveu Manguel, “afirma a
preseverança da memória”; e ainda que a memória não seja agradável,
mas a recordação de que “um acto pouco caridoso se tornou num acto
pouco caridoso em que muitos homens foram condenados a errar”.
Acrescenta Manguel: “‘Pogroms’, expulsões, limpezas étnicas,
genocídios, que não olham a nacionalidade ou credo, são a extensão
abominável desta leitura da lenda.”
Talvez qualquer biblioteca seja um lugar de memória. A biblioteca de
Ets Haim é a memória de uma comunidade que fugiu da Península Ibérica,
e fez o melhor que pôde da tarefa de errar pelo mundo. A
correspondência com Hamburgo, com Londres, o Brasil, Suriname,
Curaçao, estabelece laços estreitos com as comunidade “filhas”
sefarditas, espalhadas pelas rotas comerciais e coloniais.
Ets Haim também guarda a memória da dor – não há outra palavra – de
não estar bem em lado nenhum.
E Ets Haim é, sobretudo, a memória de um milagre.
Só houve um período em que Ets Haim se ausentou de Amesterdão. Durou
três anos, entre 1943 e 1946. Todo os livros foram postos dentro de
contentores e foram levados para a Alemanha Nazi. O destino era o
“Institut zur Erforschung der Judenfrage”, o “Instituto para o Estudo
da Questão Judaica”, em Frankfurt, que, quando a guerra terminasse e a
Alemanha saísse vitoriosa, se dedicaria ao estudo do judaísmo sem
judeus.
Quando Ets Haim viajava dentro de contentores dentro de camiões, os
aliados bombardearam Frankfurt; as colecções de Ets Haim nunca
chegaram ao destino. Encontrados por tropas americanas, os contentores
etiquetados e por abrir regressaram a Amsterdão. O bibliotecário dessa
altura era Jacob da Silva Rosa e ele nunca regressou da Alemanha.
Ets Haim quer dizer literalmente: “A árvore da vida”.
Mas voltando ao grupo de homens: uma biblioteca destas não é uma
pessoa mas uma comunidade; isso é a primeira coisa que Rosenberg quer
deixar claro.
Agora mesmo – parece, mas não é – a biblioteca não é este homem baixo
e redondo, que supervisionou o restauro do edifício e de muitos dos
livros nos últimos 15 anos.
“Aqui encontra uma comunidade”, diz Abraham Rosenberg. “Era isso que
se devia escrever numa história da biblioteca.”
Essa tarefa – escrever uma história de Ets Haim – devia caber a uma
comunidade ainda mais alargada: de investigadores portugueses,
espanhóis, holandeses, americanos, israelitas, defende o
bibliotecário. Não é tarefa para um homem. Mesmo para um homem que não
pára. E porque tudo dentro da biblioteca é tão quieto, como se
estivéssemos sentados dentro de uma fotografia, os movimentos de
Rosenberg parecem ainda mais frenéticos.
Anda das prateleiras para a secretária do seu assistente – um homem
alto e alongado, com um sorriso-mona-lisa como se esperasse que a
qualquer momento qualquer pessoa pudesse contar uma anedota.
Dois homens sentados com as costas muito direitas esperam por
Rosenberg nas duas únicas cadeiras à entrada da biblioteca.
Rosenberg volta de novo para as prateleiras. Retira um livro com
listas de nomes, por ordem alfabética. B – “Belmonte, Belmonte…”, o
dedo do bibliotecário percorre a coluna de Belmontes – alguns não são
de Portugal, mas de Espanha ou de Itália, outros são de Portugal, mas
da Madeira. Quanto a Abraham de Iosseph Belmonte – que “ELHE POS A
PRIMEIRA PEDRA” na parede de uma das partes do complexo da Sinagoga
Portuguesa de Amesterdão, segundo placa nessa mesma parede – é
impossível dizer se veio, ou veio a sua família, de Belmonte ou não.
Rosenberg conhece bem Portugal, e claro que visitou Belmonte, onde os
cripto-judeus mantiveram costumes judaicos durante cinco séculos.
Nesse dia, tocava a banda da vila e toda a gente veio ouvir. Rosenberg
observou as diferenças mas também as parecenças. Não era tão diferente
da vila onde cresceu no Sul da Holanda: as pessoas tão felizes; a
música tão má. Rosenberg dá uma gargalhada.
Nós somos o local onde estamos. As diferenças, diz, “são saudáveis”. A
sinagoga de Bevis Marks em Londres poder ter a mesma arquitectura do
que a Esnoga de Amesterdão, e também a congregação de Shearith Israel,
em Nova Iorque, segue o mesmo modelo, mas cada comunidade encontra o
seu caminho.
Nós somos a nossa história. Até hoje, Rosenberg gosta do som de gaita
de foles. A sua mulher, não suporta. O som de gaita de foles faz
lembrar o bibliotecário Rosenberg da sua infância e de festa – é o som
da libertação. A vila para onde tinha sido levado clandestino quando
era criança foi libertada por um regimento escocês.
O que este espaço forrado a livros conta é que um grupo de
cristãos-novos veio para Amesterdão, onde aprenderam a ser judeus
novamente. Aqui fundaram uma escola, estudaram, coleccionaram livros –
“Isso mostra muita vida!”, exclama Rosenberg – e fizeram questão que a
informação passasse de geração em geração, como ramos, galhos, flores,
despontando na eterna “árvore da vida”, “Ets Haim”.
Rosenberg volta a Portugal: “Deve haver qualquer coisa, não é? Para as
pessoas partirem assim, mas manterem sempre a ligação”. Rosenberg dá
outra gargalhada: “Pelo que eu posso compreender, é a essência da
saudade, não é?”
O bibliotecário volta às estantes. Traz uma caixa que abre e de onde
tira um pequeno livro forrado a veludo vermelho. No interior aponta a
imagem de uma fénix impressa na frontispício. É o registo mais antigo
do primeiro símbolo dos judeus portugueses em Amesterdão. O livro é de
1612, quando em vez de uma comunidade judaica portuguesa, existiam
três. Com a União *, uma ave que alimenta três filhotes passou a
representar – e assim foi até à II Guerra Mundial – a nova e mais
forte comunidade Talmude Torá (literalmente significa “Estudo da
Lei”).
Rosenberg volta a fechar o livro e afasta-se para arrumá-lo.
A fénix tinha um sol por cima e aos pés labaredas de fogo.
Representava a salvação e o renascimento depois da Inquisição. A fénix
renascida das cinzas é – de novo, e desde o fim da II Guerra Mundial –
o símbolo actual da comunidade.
No dia seguinte, Rosenberg recebe-me no seu gabinete. Enquanto
conversamos, o telefone não pára de tocar. Esta é uma semana
particularmente agitada. Na semana seguinte – parece mentira, mas não
é – no dia 1 de Abril, o bibliotecário Rosenberg ia reformar-se. Ainda
não foi encontrado um substituto.
Rosenberg é um nome askenazita (judeus com origem na Europa Ocidental
e Central), mas Abraham W. Rosenberg está com a comunidade sefardita
portuguesa desde 1975. Começou a trabalhar aqui como secretário, e a
comunidade faz parte da vida dele como ele faz parte da vida da
comunidade.
Há uma noite, na Sinagoga Portuguesa, que para ele, é sempre muito
especial: no Dia do Perdão acendem-se todas as velas, cantam-se
melodias antigas, o serviço é simples e intenso. Rosenberg confessa
que não lhe agrada o misticismo, mas durante o Yom Kippur, celebrado
na Esnoga, não consegue evitar: “As gerações anteriores olham por cima
dos nossos ombros e nós sentimo-los.”
O mistério da Sinagoga Portuguesa
Há dois momentos na história em que é fácil imaginar a Esnoga, a
Sinagoga Portuguesa, lotada.
O primeiro é o dia da inauguração. Os membros da comunidade passavam
pela porta - “Mas eu, pela abundância do Vosso amor, entrarei na Vossa
casa” (versículo 8, salmo 5), inscrito em Hebreu a letras douradas – e
admiravam-se. Nunca Amesterdão tinha visto nada assim. Nunca a Europa
tinha visto uma sinagoga assim. A única regra que orientou a
construção era que fosse bem visível das redondezas. Esta era
impossível não ver; era uma declaração firme e orgulhosa da comunidade
e do seu lugar na cidade.
Uma vez dentro, a sinagoga parecia ainda maior, os tectos abobados
longe, os candelabros caindo do céu quase até à altura das cabeças dos
homens. No interior, as 72 janelas faziam esquecer que o edifício era
feito de tijolo. A Arca (Hehal) era magnífica, e como a Teba, feita de
madeira de Jacarandá do Brasil que o Haham Aboab da Fonseca – o rabino
natural de Castro Daire, Beira Alta, que inaugurou a sinagoga e o
primeiro rabino da comunidade do Brasil –, tinha encomendado em
pessoa.
Nas suas melhores roupas, entravam, cumprimentavam-se e comentavam o
evento em português. Não parava de chegar gente. Havia lugar para 1200
homens e 400 mulheres, o que equivalia a praticamente toda a
comunidade. Os homens dirigiam-se para os bancos laterais ao eixo
central, onde podiam ver-se uns aos outros assim como ver a Teba, de
onde o Cantor lidera a cerimónia, e a Arca, voltada para Jerusalém, e
para onde eram agora transportados, com pompa e circunstância, os
rolos da Torá.
As mulheres iriam para sempre sentar-se nas galerias superiores
suportadas por musculadas colunas de pedra, e olhar os homens através
dos buracos nos biombos de madeira; mas numa gravura da época a
ilustrar o grande dia para a comunidade, vêem-se caudas de vestido a
pavonear-se no meio dos homens.
O ano não era o que estava inscrito no friso por cima da porta da
sinagoga. A construção tinha-se atrasado três anos. Estávamos em 5435
(1675 no calendário cristão), e era o Shabat depois do jejum da
Destruição do Templo. Vista de fora, com a forma de um rectângulo
curto escolhido pelo arquitecto holandês Elias Bourman, a Esnoga
lembrava os famosos estudos e desenhos do Templo de Salomão feitos por
Jacob Juda Leon. O professor ficou conhecido como Jacob Juda Leon
“Templo” e morreu nesse ano. Não sei se Leon “Templo” chegou a ver a
inauguração da sinagoga ou não.
O último momento na história de Amesterdão em que a Esnoga esteve
cheia foi na primeira cerimónia após a libertação do Nazismo.
Em nome de deus bendito, amen – agora o único português que se ouve na
sinagoga vem dos Parnassim (líderes) na Teba. Há pessoas de pé até à
porta. No meio da multidão, distinguem-se homens com chapéus pretos
altos – os membros da comunidade portuguesa. Os outros homens mantém o
chapeú da rua e serão esses askenazitas. Nesse dia, as mulheres também
se sentaram junto com os homens.
Tudo isto se vê numa fotografia. O que não se pode ver é o que sentiam
estes homens e estas mulheres, sefarditas e askenazitas, que pela
primeira vez depois da guerra, se juntavam numa cerimónia religiosa.
A sinagoga Portuguesa era a única em Amesterdão que permanecera
intacta. Era dia 9 de Maio de 1945. A guerra tinha acabado há quatro
dias.
Agora não há ninguém na Sinagoga Portugesa. A Arca está fechada. O
Cantor não está na Teba. Das galerias das mulheres no primeiro andar
não chega nem um cochicho. As 613 velas todas apagadas.
Mas tudo está como nesses dois dias – separados entre eles por 270
anos – cheios de ruído de gente. O soalho de madeira continua coberto
com uma fina camada de areia como era costume na Amesterdão do século
XVII. E acender as 613 velas – o que demora uma hora - continua a ser
a única forma de iluminar a sinagoga à noite.
A Esnoga estaria exactamente assim: intacta e vazia – excepto um
rapazito em arrumações – quando entrou um oficial das SS. O edifício
da sinagoga era ideal para albergar os judeus que seriam deportados:
era um ícone da Amesterdão judaica e caberia muita gente.
O rapaz suspendou as suas tarefas para responder às perguntas do
oficial alemão e explicou-lhe que a sinagoga – exactamente assim desde
o século XVII – não possuía rede de luz eléctrica, não era talvez o
sítio mais prático. O oficial aparentemente concordou, e perto dali,
escolheu o teatro Hollandsche Schouwburg para o efeito.
Natham Moked, o actual secretário da Sinagoga Portuguesa, termina a
história e encolhe os ombros: a Esnoga atravessou a guerra imaculada e
para isso não existe uma explicação satisfatória. Do outro lado da
praça Jonas Daniel, a Grande Sinagoga Askenazita ficou irreconhecível.
Por toda a área que circunda a Esnoga, por todo o bairro judeu, as
casas – tanto de ricos como de pobres –, vazias, foram esventradas
durante o último Inveno da Fome até não sobrar sequer o chão. Depois
da guerra, a maior parte das casas, sem donos e em mau estado, foram
demolidas.
Então, quando abriram as portas após a libertação, e os judeus
sobreviventes entraram, viram que tudo estava como dantes. A principal
diferença não era no edifício mas nas pessoas.
Natham Moked aponta para os bancos alinhados na sinagoga: “Muitas
gavetas continuam fechadas, nem sabemos o que contém.” As gavetas são
os baús dentro dos bancos. O tampo dos bancos abre e fecha com uma
pequena chave. Natham Moked leva, expressivamente, a mão ao bolso do
casaco. Os membros da comunidade levavam com eles as chaves quando
foram transportados para os campos alemães. Poucos regressaram.
À espera dos mortos
“No ano de 1614, eu fui para o Jardim do Éden…”
Para Beth Haim, seria uma hora de bicicleta pelas margens do Amstel,
ou então, um metro, um autocarro, e uma curta caminhada a pé para o
centro da vila de Ouderkerk. O “jardim do éden” é um campo de ervas
altas indomáveis com uma ovelha domesticada a guardar. A entrada
principal é do outro lado, dando a volta pela igreja principal da vila
e passando as casas todas iguais holandesas.
Dennis Ouderdorp abre o portão e pára junto do mapa com uma nota
história à entrada, de onde se tem uma visão global do cemitério.
Algumas campas visíveis vão acidentando o terreno liso onde os túmulos
há muito se afundaram.
Dennis Ouderdorp é um rapaz alto e largo. Usa um boné e fala sem
parar, parando de vez em quando só para rir, excitado com a companhia
dos vivos. Dennis é bastante novo, filho de uma Rozado do Suriname, e
decidiu dedicar o seu jovem tempo à envelhecida comunidade sefardita.
Ele é o guarda, o guia e a alma do cemitério português de Beth Haim,
em Ouderkerk.
Dennis toma o seu tempo: uma manhã não chega para mostrar, traduzir,
comentar as pedras tumulares mais antigas. São feitas de mármore
mediterrânico e são quase barrocas na sua comemoração da morte:
caveiras, anjos, árvores, ampulhetas – todos os elementos simbólicos
da morte e da vida, e a expressão da confusão que a comunidade
portuguesa deve ter sentido nos primeiros anos, nascida cristã-nova,
morta judaica.
O rabino Aboab da Fonseca está enterrado aqui. Também Menasseh ben
Israel, e uma placa oferecida recentemente pelos ingleses reproduz os
versos apagados na campa do “judeu errante”: “NO MVRIO POR QUEN EN
CIELO / VIVE CON SVPREMA GLORIA / Y SV PLVMA A SV MEMORIA / IN MORTAL
DEXA EN EL SVELO”. E repousa aqui Michael de Espinoza, o pai do
filósofo Baruch de Espinoza – o judeu português mais famoso e
famosamente excomungado.
Se a Segunda Guerra Mundial não tivesse acontecido, teria sido preciso
comprar terreno para outro cemitério ou comprar terreno ao lado deste
(como aconteceu ao longo dos séculos) para continuar a expandir a
habitação para os mortos.
Mas a Segunda Guerra Mundial aconteceu. E o Holocausto aconteceu. Há
espaço de sobra no cemitério.
Dennis Ouderdorp está convicto de que as 800 parcelas de terra que tem
vagas serão suficientes até aos últimos dias da comunidade. Se
tivermos em conta que são menos de 800 membros a contar com ele
próprio e as crianças, e se tivermos em conta que cada vez mais as
novas gerações tendem a não viver a religião ou então, a vivê-la
noutro lugar – Estados Unidos e Israel, sobretudo –, é impossível não
dar razão a Dennis Ouderdorp.
“Talvez seja melhor quando acabe”, diz subitamente. “Porque acaba-se a
agonia.”
Beth Haim quer dizer “Casa da Vida”, mas em Beth Haim é impossível
esquecermos a destruição da Segunda Guerra Mundial. 90% dos judeus da
Holanda morreram no Holocausto.
Há um quadrado de terreno onde estão enterrados os membros da
comunidade portuguesa que morreram no campo de trânsito holandês de
Westerbork. Por todo o cemitério se vêem placas de reservados. Algumas
parcelas são de Parnassim que ainda não morreram. Mas há muitas campas
vazias, porque nunca houve corpos.
A parte mais velha do cemitério é um triângulo delimitado por três
árvores. E aí está o túmulo mais antigo: uma pequena campa de uma
criatura de seis anos.
O mais velho dos dois gatos de Dennis, que o segue para todo o lado,
deita-se sobre a campa. Ouderdorp pega no gato e põe-no ao ombro, para
poder ler os caracteres hebreus. Traduz: “No ano de 1614, eu fui para
o Jardim do Éden. O meu nome é Joseph e enterraram-me debaixo desta
terra e embora eu não tenha gozado de vida longa, com o meu enterro
inauguraram Beth Haim.”
Joseph de David Senior era filho do Parnas, um líder da comunidade,
David Senior. Nada lhe poderia dar mais conforto do que saber que o
seu filho inaugurava, no início do século XVII, o cemitério de uma
comunidade que iria multiplicar-se, espalhar-se pelo mundo e estar
viva, ainda, 400 anos depois.
* Todas as palavras em itálico são termos em português, tal como são
utilizados pela comunidade de Amesterdão.

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